Retratos do cotidiano I

Ao transitar nas inúmeras vezes nos ônibus que me levam à velha labuta, deparo-me com cenas muito inusitadas. Diversas vezes tenho que viajar sob o julgo da oratória de fiéis evangélicos. São muitos os minutos de angústia, os quais qualifico como dilacerantes, desconcertantes, horrivelmente impiedosas as palavras do irmão da fé. Penso, como pensam outras pessoas, que vamos todos parar no inferno por não nos encaixarmos nos padrões morais de nossos oradores.

Outras cenas me levam ao deleite, ao prazer de presenciá-las, escutá-las. São verdadeiras obras-primas remando ao vento quente do nordeste do Brasil. Muitas são pérolas que participo com meu ouvido coadjuvante.

Belo dia entrei no ônibus Barro/Macaxeira, veículo que me leva a outro ônibus com destino ao distrito industrial, no qual me acabo por oito horas diárias. De repente, dou de cara com duas senhoras que tinham como destino os presídios da Ilha de Itamaracá. E começa o ato número um. Aquela senhora morena, baixinha, de olhar simpático, típico dos meretrícios pernambucanos, começa uma conversa pitoresca acerca do que iriam fazer para aquelas bandas dos presídios da ilha.

– Vou ver meu homem. Diz a outra senhora mais branquinha, de altura tão igual à outra.

– Primeiro vou lavar roupas depois me deito, mas só quando terminar a roupa. Retruca a morena.

-Eu não, vou botar meu biquíni, dar uma volta na praia e depois vou dar uma furada. Completa a branquinha.

Aquilo tudo passava percebido pelos ouvidos dos que estavam na parte traseira do ônibus de Abreu e Lima. Confabulavam com extrema liberdade. Os detalhes eram contados abertamente. Tão abertos que descobri o que queria dizer a branquinha com a expressão “dar uma furada”. É isso mesmo. Dar uma trepada com seu nego quente. Matar as saudades do seu amor “fiel”. Eram as minúcias dos encontros amorosos das amantes de criminosos solitários. A vida era tão aberta quanto as portas das Universidades do Amor da Região Metropolitana do Recife.

Hoje encontrei a senhora branquinha novamente. Fazia um sol escaldante às seis e quarenta e oito da manhã. Estava ela acompanhada de outra senhora e seu filho. Tomava café pequeno enquanto “furava” a fila do ônibus. Entrei primeiro e, de alguma forma, não estava preparado para a próxima cena inusitada. Mas ela fez questão de me colocar como coadjuvante novamente. Eu e o Abreu e Lima inteiro, lotado, com um calor quase infernal, para aquela caixa vermelha de metal que se transformava no ônibus de Abreu. E ela entra. Seios fartos, cabelos encaracolados, pele branca queimada de sol, e que aqui chamamos de galega em Pernambuco. Cafezinho no bico, abrindo espaço entre aqueles que estavam em pé aguardando a partida do ônibus, quando, de repente, a outra senhora fala em alto e bom som.

- Mas você gosta de café, num é?

– E então, sou tarada por cafezinho e por homi.

Não  pude deixar de dar minha gargalhada gostosa e ficar agradecido por mais um dia de viagem.

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