Meninos de rua, a maré

O Recife acordou com uma chuva intensa. Os primeiros movimentos registrados eram de um grupo de meninos de rua que migravam para outro canto da cidade. A madrugada foi perturbadora. Mal conseguiram pregar os olhos. Fortes ventos sopraram seus corpos franzinos. Muito frio, roupas ensopadas e corpos trêmulos. A fome era outro fator preocupante. Não haviam comido à noite devido o temporal.

Lentamente, um a um, foram se levantando. Saíam na direção da Rua Nova. A cidade começava a abrir as suas valas. Enquanto caminhavam, contemplavam a agonizante vida no mangue, um bioma tão ameaçado quanto eles. A vida ali era minguada, afetada pela intensa poluição do rio. As vezes eles desciam para se contaminar, alimentando-se daqueles animais subaquáticos. Ali servia também de refúgio e esconderijo. Nem sempre se davam bem. Os cortes nos pés em processo de cicatrização era o resultado da caminhada sobre os dejetos que a cidade vomitava ali, arrastados pela maré e arremessados contra as paredes de concreto seculares.

Não voltariam ali naquele dia. O destino era correr a Rua Nova e seguir para onde o Capibaribe faz a volta. Ali tomariam o vento do Atlântico para si e o cheiro de maré que se confunde com o cheiro do peixe do rio da vida de centenas de criaturas. Andavam apressados, mas com cuidado com os pequenos que vislumbravam os prédios seculares ao seu redor. Tangiam os guris para que ficassem à frente do grupo, assim poderiam estar mais protegidos das malquerenças do povo do outro lado do rio. E foram seguindo uma rota tão conhecida como aquela de xiés e aratus dentro do mangue.

O sono já não fazia a menor diferença naquele momento. Arrastavam-se do mesmo jeito, desengonçados, com os braços roçando o chão, roçando as costas… roçando suas camisas dormitórios, entre uma tragada na garrafa de cola nossa de cada dia. No trajeto sempre tinha um engraçadinho que subia na mureta das pontes, avisando que iam despencar pra comer xiés. E todo mundo ria de se acabar, enquanto chegavam no outro lado do Capibaribe, mais largo e mais intenso, escorrendo para os dois lados do Recife.

A maré lhes parecia contemplativa. Parecia que tinham passado um dia inteiro pra sair da Rua da Imperatriz, cruzar a ponte de ferro, cair na Rua Nova, bagunçar a Praça do Diário e seguir para o outro lado do Capibaribe. Na verdade já tinham feito da sua presença no centro do Recife um caso policial, ou melhor um caso social. Não são cidadãos. Não são aceitos, incomodam, causam o caos. Essa é a realidade dos excluídos da cidade. Marginalizados, pagam o preço da sua presença no mundo. Mas são rápidos e tem uma consciência de classe que nem mesmo operário esmagado pelo sistema capitalista em Pernambuco têm noção.

Escapuliram e ainda deram dedos para as “autoridades”. E andavam ainda mais confiantes com seus braços quase arrastando pelo chão e roçando nas suas bundas, bagunçando e avoaçando seus camisões dormitórios. Brindavam um porre de cola e tangiam os pequenos para frente do bando, protegendo-os das possíveis rebordosas. E celebravam aquilo tudo como se fosse um troféu diário no diário das suas existências. Ali, entremeados entre o regozijo e a felicidade de mais uma vez coesos e sem a violência diária que cobrem os seus corpos, brindaram mais uma garrafa cola de sapateiro. E se riam e se abraçavam na frente do rio.

A tarde já se amolecia para os encantos da noite quando todos estavam sentados na beira da maré festejando suas resistências, enquanto os menores tomavam banho de maré.

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